Nau
Negra é uma obra de ficção em banda desenhada e não uma tentativa
de reconstituição histórica. É, contudo, sustentada por
referências históricas concretas e procura dar uma ideia do
ambiente da época, ainda que de modo ligeiro. Charles Ralph Boxer é,
neste campo, a principal fonte de inspiração e, sobretudo, uma
ampla fonte de informação. Os acontecimentos desta história foram
tirados da sua obra “O Grande Navio de Amacau.” São eles o
destino trágico da nau Madre de Deus capitaneada por André Pessoa e
destruída à saída de Nagasaki, depois de três dias de luta em
Janeiro de 1610, e as peripécias registadas por Richard Cocks,
feitor inglês de Hirado, da nau Nossa Senhora da Vida, capitaneada
por Lopo Sarmento de Carvalho, oito anos depois. Boxer, nas suas
obras, dá-nos mais do que uma possível interpretação das
informações que colheu. Para este enredo, criei mais uma. A ideia
de um aventureiro japonês surgiu ao deparar com uma fugaz referência
à presença de japoneses entre os corsários de Argel, nas primeiras
décadas de 1600, escondida numa nota de rodapé em “O Mediterrâneo
e o Mundo Mediterrânico” de Fernand Braudel. Não sabia eu, então,
que a presença de japoneses nos mares dessa época era muito maior
do que uma ideia enraizada, a do Japão-país-fechado, nos faz crer.
Porém,
a ideia do japonês aventureiro, o barqueiro da história, talvez
tivesse sido esquecida ao fim de algum tempo se eu não transportasse
comigo, na bagagem, uma antiga publicação sobre os biombos namban
do Museu Nacional de Arte Antiga. Foram as imagens dos biombos que me
mantiveram agarrado, durante anos, à ideia de fazer esta história.
OS
BIOMBOS NAMBAN E AS PALAVRAS DA ÉPOCA
Os
melhores biombos namban do
Museu Nacional de Arte Antiga, feitos no Japão no princípio do
século XVII e que representam a chegada de navios portugueses, são
um trabalho complexo e podem ser incluídos na lista das mais bem
conseguidas narrativas gráficas que se conhecem. Não é um trabalho
apenas decorativo, como se espera de um biombo, não é simples
caricatura para entreter ou exclusivamente um relatório ou
reportagem sobre um determinado acontecimento, são sobretudo várias
histórias em torno de episódios de um acontecimento. Quando
comparados com as detalhadas ilustrações que os artistas japoneses
fizeram, uns séculos mais tarde, da chegada dos navios americanos, e
que se aproximam muito claramente da informação militar, percebe-se
que a intenção é mesmo fazer um filme que torne acessível ao
observador japonês não só informação técnica e militar, como
também comportamental. Para quem a saiba ler, cada um daqueles
narizes compridos é uma bandeira espetada num pedaço de informação.
Cada um conta uma história ligeiramente diferente, mas talvez mais
humana e acessível, até caricatural, dentro de um conjunto que, por
sua vez, é radicalmente diferente daquele a que é destinada a
mensagem, pintado por convenções sociais e enquadramento técnico,
por vezes interpretados ao pormenor.
Exceptuando
o sermão do frade italiano, tirado de um texto de Frei Tomé de
Jesus, de finais do século XVI, não fiz qualquer esforço para
preservar o discurso da época, mas deixei bem visíveis as
ansiedades de classe dos portugueses, através da manipulação um
pouco arbitrária dos pronomes de tratamento. Convém, ainda, para
compreender os europeus da época, lembrar que o banho era
francamente impopular, que a crença nas relíquias de santos e
mártires era uma febre mórbida e devoradora, que o martírio, por
cruel que fosse, era tido em grande glória e mesmo provocado, que a
tortura e a execução eram apreciados espetáculos públicos, que as
chacinas cometidas nas guerras religiosas da época eram tidas como
exemplos a emular, que foram tempos de escravatura desenfreada e
brutal, defendida em nome do realismo económico, e que, no Oriente,
escravos até os havia nas comitivas de guarda-costas e espadachins
dos portugueses abastados.
Existem
várias referências à presteza com que os japoneses lidavam com
situações de perigo. Como este excerto duma carta de Diogo do
Couto, referindo-se a um episódio em que os portugueses assistiam
passivos ao roubo da sua fazenda pelos holandeses, datada de Goa, 23
de Dezembro de 1605: “(...) e andando os olandezes em terra tomando
entrega della, e os nossos Portugueses da náo com maõs amarradas
sem fazerem nada, enfundio deos nosso senhor Animo em quinze ou vinte
Japõis Christãos, que aly estavao em huma soma, e aleuantando hum
cruxifiçio Remeterão com suas catanas aos olandezes e mataraõ a
mor parte delles, e daquelle caminho logo se forão embarcar em huma
soma e se forão.”
A
propósito de cortes de orelhas, antiga punição legal que criou a
categoria de “desorelhados”, e com a mesma naturalidade com que
fala de degolações e de cabeças empilhadas, narra António de
Oliveira Cadornega na “História
Geral das Guerras Angolanas”: “(...) dizião os Antigos
Conquistadores fora tanta a matança em aquele basto gentio que
mandára o nosso Conquistador a Portugal dous Barris de seis Almuzes
de narizes e orelhas do gentio que se havia morto naquellas batalhas
e recontros (...)”
Por
seu lado, conta
Frei Paulo da Trindade, na abundante descrição de martírios e
milagres que são os três grossos volumes da “Conquista
Espiritual do Oriente”, a propósito duma particular relíquia dos
mártires do Japão, que podia muito bem ser semelhante à que o
frade italiano trouxe discretamente para bordo: “(...)
um italiano chamado João Baptista, colheu em um chapéu muito sangue
do Comissário e dos bem-aventurados mártires (...) e depois o
lançou em um bule de porcelana e o guardou, e nove meses depois do
martírio (...) se quebrou a vasilha onde o sangue estava, o qual foi
achado líquido e sem nenhum mau cheiro, como consta do testemunho
que disto se tomou.”
Respeitou-se
a informação contida nos biombos, em relação às naus. Há três
tipos de naus representadas nos principais biombos namban, uma mais
antiga, atribuída a Kano Domi, com dois castelos saindo sobre a proa
e popa do navio, típico das naus do século anterior, mas que são
tão cómicos que é duvidoso que o artista tenha chegado a ver
alguma delas, e duas outras atribuídas a Kano Naizen, em que o
castelo de proa, mais discreto, já vem na continuação do casco e
prolonga-se pelo beque, e em que a superstrutura da popa ou é
quadrada ou exibe uma tentativa de modernização, alta e com um
final muito estreito. Escolhi esta para a nau mais recente, em que
decorre a história, e aquela para a nau da batalha. Quanto ao perfil
das galeotas, parece-me possível que variasse entre as linhas da
galé e do pataxo. Escolhi dar à que aparece aqui uma forma de
pequeno pataxo, tal como é referido em texto da época. Em qualquer
dos casos, não se procurou tratar as embarcações em pormenor, ou
com exagerado rigor.
A
solução encontrada pelos passageiros da nau para escapar ao navio
corsário holandês, ou seja, adiar a viagem por um ano, esperando
que ele então já lá não esteja, não é de estranhar, pois era
prática corrente não sair enquanto houvesse inimigo na costa. A
atitude passiva dos portugueses, já comentada desfavoravelmente na
carta de Diogo do Couto, justifica-se em parte pelas conhecidas
capacidades náuticas dos navios norte-europeus, ao ponto de André
Furtado de Mendonça, Capitão-Mor e Geral do Mar do Sul, em carta de
Amboino, de 10 de Maio de 1602, comparar o seu próprio navio a um
ponto de aguada em terra: “(...)
e indolhe dando caça hum pedaço (...) e não ter outro velame para
meter nas vergas, e as naus ingresas serem tão ligeiras que com o
papafigo de proa sem outra nenhuma vella dado, hião desapareçendo
de nos, surgi em paragem (...); visto estar desenganado que a mais
ligeira nao de minha companhia em comparação da dos Ingreses fica
sendo o morro d’Angediva; mas ao que Deus ordena não ha poder
fugir (...)”
Devagar,
devagarinho...
Fernando Relvas
Dezembro 2014